17.12.06

Um ciclista

O passado é como o mar: nunca sossega. As casas encolhem. como os velhos, ao passo que as árvores crescem sem parar. Quando regressamos, decorridos muitos anos, aos lugares da nossa infância encontramos árvores gigantescas e sufocando de terror à sombra delas as casas minúsculas que um dia foram nossas. Mal reconhecemos a cama de bonecas em que dormimos quando éramos crianças, ou o quintal, que sempre julgámos ser imenso, e que tem, afinal, apenas dois palmos de fundo.
O meu pai dizia-me:
- A vida é uma corrida, meu filho. Quem olha para trás enquanto corre arrisca-se a tropeçar.
Eu não olho para trás. Avanço por vezes de olhos fechados, e tropeço, como os outros, e eventualmente caio, mas não olho para trás. Nunca fui pessoa de cultivar saudades. Não colecciono álbuns de fotografias, e jamais guardei pétalas secas entre as páginas de velhos livros. Sigo sempre em frente. Quando me perguntam para onde vou encolho os ombros. Rio-me:
- Adiante.
O mundo é infinito para quem viaja a pé. Eu viajo a pé, à boleia de algum camião, ou de bicicleta. Andando de camião, ou de bicicleta, o mundo parece um pouquinho menor, mas ainda assim, digo-lhe, meu bom amigo, é uma imensidão. [...]
[...] Quando sinto que me começo a afeiçoar a um lugar, despeço-me e vou-me embora. Quem não ama não sofre. Quem nada tem, não tem nada a perder. É o que penso. Um dia adormeci no topo de um enorme despenhadeiro. Acordei com a primeira luz. A manhã pousou-me no ombro, como um pássaro, e ali ficou. Diante de mim havia o mar. Atrás de mim o céu profundo, altas montanhas. Era um lugar sem exemplo, arredado do mundo, como um elefante velho que se perdeu da manada. Até àquele instante eu viajava sem saber porquê. E então, sentado sobre o abismo, ocorreu-me pela primeira vez essa questão. «O que faço aqui?» Pensei em voltar para trás. Porém, tinha caminhado demais, e já tanto fazia recuar como avançar. Continuei em frente. Hoje viajo para saber porquê. Desaponta-o, talvez, este final - esperava outro? Se tivesse ficado lá atrás, nas montanhas do Peru, onde nasci, venderia botões, como o meu pai. Teria algo a perder, família e dinheiro, por certo sofreria mais. Quanto ao resto não sei se seria, em substância, muito diverso do que sou. Ignoraria certas coisas, sim, o senhor tem razão, mas não me prejudicaria tal ignorância, pois nem sequer daria por ela. Talvez um dia eu pare. Talvez não.
José Eduardo Agualusa in Passageiros em Trânsito

1 Posfácios:

Blogger Rafael M. Silva escreveu...

Bem, parece que o caminho e o lugar onde chegamos nem sempre é exactamente como queríamos. Apesar de tudo temos que tirar o bom (até) daquilo que é mau... É o desafio.

21/12/06 11:26  

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