26.12.05

A maldição do homem

Logo no começo do Génesis, está escrito que Deus criou o homem para que ele reinasse sobre os pássaros, os peixes e o gado. É claro que o Génesis é obra do homem e não do cavalo. Ninguém pode ter a certeza absoluta que Deus realmente queria que o homem reinasse sobre todas as criaturas. (...)
É um direito que só nos parece natural porque quem está no topo da hierarquia somos nós. (...)
[Tereza] sente-se sozinha com o seu amor pelo seu cão. Pensa, com um sorriso melancólico, que tem de disfarçá-lo melhor do que se tivesse de esconder uma infidelidade. Ter amor por um cão é uma coisa escandalosa. Se, em vez disso, a vizinha tivesse sabido que andava a enganar Tomas, só teria recebido uma palmada cúmplice nas costas!(...)
Será sempre impossível determinar com um mínimo de segurança em que medida é que as nossas relações com outrem resultam dos nossos sentimentos, do nosso amor, do nosso desamor, da nossa benevolência ou do nosso ódio, e em que medida é que estão previamente condicionadas pelas relações de forças existentes entre os indivíduos.
A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem de todos os outros.
(...) o idílio é a imagem que nos ficou gravada na lembrança como representação do Paraíso. A vida no Paraíso não era uma caminhada sempre em linha recta para o desconhecido, não era uma aventura. Movia-se em círculo, entre as coisas conhecidas. A sua monotonia não era tédio, mas felicidade. (...)
No Paraíso, quando Adão se debruçava nas fontes, ainda não sabia que estava a ver a sua própria imagem. (...) Adão era como Karenine. (...)
A comparação de Karenine com Adão leva-me a pensar que, no Paraíso, o homem ainda não era bem o homem. Para ser mais exacto: o homem ainda não se tinha lançado na trajectória do homem. Pela nossa parte, há muito que estamos lançados nessa trajectória e voamos no vazio de um tempo que corre sempre a direito. Mas ainda existe em nós um fino cordão a ligar-nos ao longínquo Paraíso enevoado (...). A nostalgia do Paraíso é o desejo que o homem tem de não ser homem.
(...) nasce no espírito de Tereza um pensamento blasfemo de que não consegue livrar-se: o amor que a une a Karenine é melhor do que o amor que existe entre ela e Tomas. Melhor, e não maior.(...)
É um amor desinteressado: Tereza não quer nada de Karenine. Nem sequer exige que ele a ame. Nunca se atormentou com as perguntas que torturam os homens e as mulheres (...).
Tereza aceitou Karenine tal e qual como ele é, não tentou modificá-lo (...).
O seu amor pelo cão é um amor voluntário, ninguém a obrigou a isso. (...)
Nenhum ser humano pode presentear outro com o idílio. Só o animal pode fazê-lo porque não foi expulso do Paraíso. O amor entre o homem e o cão é idílico. (...)
O tempo humano não anda em círculo, mas avança em linha recta. Por isso o homem não pode ser feliz: a felicidade é o desejo de repetição.
Milan Kundera in A Insustentável Leveza do Ser (7°parte - cap.2&4)