4.2.07

Bárbaros...

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- Não tenho qualquer dúvida de que os judeus são um povo bárbaro - disse, enquanto olhava para mim com uma expressão transbordante de ira. - Sabes que não abandonam nenhum dos filhos à nascença? Nenhum, nem mesmo as filhas! Recebem da mesma maneira os filhos que desejaram com os que não quiseram. Isto... isto é uma coisa que eu já sabia e que me repugnava bastante, mas toda esta história da menina regressada à vida... Ó, deuses!, quem perderia tempo a devolver a vida a uma rapariga? Um rapaz... um rapaz pode vir a ser um soldado, um comerciante, um lavrador... Agora uma rapariga... para que serve?
Fiquei calado. Não duvidava nem um pouco de que o imperador tinha razão. Nós, que éramos um povo civilizado, ao contrário dos judeus, nunca teríamos ficado com um recém-nascido que não desejássemos. Ter-lhe-íamos posto fim à vida de uma maneira que lhe causasse o mínimo de sofrimento possível ou então tê-lo-íamos abandonado num sítio em que ninguém que quisesse fazer negócio com ele pudesse encontrá-lo, mas sobretudo nunca nos teria passado pela cabeça preocuparmo-nos com uma criança do sexo feminino. Ao longo de toda a minha vida não conhecera uma única família romana que tivesse mais de uma filha. Não é que a matrona não as tivesse parido, muito simplesmente a segunda filha (e a terceira e a quarta...) era abandonada sem qualquer hesitação. Todos sabiam que não passaria de um fardo e que não fazia sentido agir de outra maneira.
- Não há dúvida de que estes asiáticos são perigosos - disse Nero, enquanto voltava a encher a taça. - Salvar meninas!
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- Talvez não fosse assim tão grave, Vitalis - disse Róscio, interrompendo-me. - Afinal não vamos proibir ninguém de ter a sua religião. São todas tão parecidas... Em todas elas há deuses que podem ser aplacados com os mais variados sacrifícios, realizados pelos mais diversos sacerdotes. Mas estes nazarenos acabam por ser muito diferentes. Não é só por acreditarem num único deus, isso também acontece com os judeus, é também por ensinarem coisas que... bom, Vitalis, coisas que levariam a que não conseguíssemos manter o império. A ambição, a cobiça e a violência dos homens podem ser más, mas tambem sustentam o edifício do poder de Roma. Graças a elas temos militares valentes, funcionários devotados e prestimistas prósperos. Mas que seria de nós se começássemos a preocupar-nos com os velhos, se nos afligíssemos de cada vez que abandonamos uma menina recém-nascida, se empregássemos os nossos esforços a tratar doentes em vez de os afastarmos de nós para evitar o contágio? Será que não te apercebes do caos a que esta doutrina conduziria? Não, Vitalis, não. Talez o pescador esteja inocente, talvez não tenha nada contra Roma, mas dificilmente aquilo que ele ensina não terá consequências negativas para nós.
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- Isto não é uma guerra de escravos... - comentei, enquanto me servia de mais vinho.
- Não, claro que não - condescendeu Róscio -, nada indica que os nazarenos venham a pegar em armas, como aconteceu com Espártaco e com os gladiadores que ele liderou. Não o fizeram em mais de trinta anos e nenhum grupo violento aguenta tanto tempo sem degolar ninguém. No entanto considero que apesar disso eles não deixaram de ser perigosos. para ser sincero não sei o que mais me inquieta, se um grupo de escravos que tem a intenção de me cortar o pescoço, se um movimento de bárbaros que não hesita em considerar que vale a pena salvar a vida de qualquer ser humano, independentemente da sua condição.
Róscio fez uma pausa e olhou para mim. Também ele estava acabrunhado. Nem ao ser humano mais endurecido agrada a ideia de tirar a vida a um semelhante. Antes de chegar a este ponto tem de obrigar o seu coração a reduzir o outro à condição de besta, de parasita, de bruto. É relativamente fácil matar uma pessoa quando estamos convencidos de que é um animal selvagem que quer tirar-nos o que nos pertence ou quando consideramos que é tão desprezível que da sua morte pode resultar benefício semelhante ao que se tem quando esmagamos uma mosca maçadora ou quando rebentamos uma pulga sedenta de sangue, mas daí a enfrentarmos uma pessoa que vemos que se parece connosco e a tirar-lhe a vida...
[...] Não podemos tratar os fracos da mesma maneira que tratamos os fortes, por isso é que abandonamos muitas crianças à nascença, por isso é que procuramos que o número de mulheres não seja excessivo, para que não sejam um peso para as famílias, por isso é que os médicos são os primeiros a sair da cidade e se dirigem para lugares segurios quando há alguma epidemia. E é assim que devemos proceder se queremos continuar a ser fortes. A maioria dos bárbaros sabe-o e imita-nos. Só aqueles que são especialmente degenerados, como os judeus e esses nazarenos, que de qualquer modo apareceram no seu seio, não o fazem.
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César Vidal in O Testamento do Pescador (cap. IX & XII)