23.11.05

O Mundo Perfeito

Deus das almas vagabundas, Deus fugido dos deuses, atende-me. Tu, destino que proteges espíritos loucos e errantes como o meu, escuta-me.
Vivo no meio de uma raça de homens perfeitos.
Eu, o mais imperfeito de todos os homens.
Eu, um caos humano, uma nebulosa de confusão, movo-me entre mundos perfeitos, entre povos regidos por leis exemplares, que seguem uma ordem pura; de pensamentos catalogados, de sonhos ordenados, de visões inscritas e registadas.
As suas virtudes, meu deus, estão medidas, os seus pecados estão calculados com peso e medida, e até os inumeráveis actos que acontecem no crepúsculo – o que não é pecado nem virtude – estão registados.
Aqui, os dias e as noites dividem-se em períodos exactos, e as estações são governadas por normas de precisão impecável. Comer, beber, dormir, vestir, e depois cansar-se. Tudo a seu tempo. Trabalhar, jogar, cantar, depois entregar-se ao descanso, tudo na hora que o relógio determina.
Pensar e sentir de modo definitivo e programado depois de pensar e sentir quando certa estrela sobe ao longínquo horizonte. Roubar o vizinho com um sorriso, dar uma prenda com gesto gracioso, louvar com prudência, censurar com cautela, destruir uma alma com uma só palavra, queimar um corpo com um sopro, e a seguir lavar as mãos uma vez cumprida a tarefa diária.
Amar de acordo com a ordem estabelecida, divertir-se segundo o que se combinou, adorar adequadamente os deuses, enganar o diabo com artifícios e depois esquecer tudo como se a memória tivesse morrido. Imaginar com um fim determinado, projectar certas considerações, ser feliz com discrição, sofrer com nobreza, depois de esvaziar a taça para no dia seguinte poder enchê-la de novo.
Todas estas coisas, meu Deus, estão concebidas com precisão, criadas pela vontade, mantidas com cuidado, governadas com regras, dirigidas pela razão e depois mortas e enterradas. E até os seus túmulos salientes que moram na alma humana têm cada um o seu número e a sua marca.
É um mundo perfeito, um mundo de excelência consumada, um mundo de coisas supremas e maravilhosas. O fruto mais maduro do Paraíso, o pensamento que rege o universo.
Mas, porque tenho eu de viver nele, meu Deus?
Eu que sou a imatura semente de uma paixão insatisfeita, louco vendaval que não vai para Oriente, nem para Ocidente, fragmento aturdido de um planeta que sucumbiu envolto em chamas.
Porque estou eu aqui?, Meu Deus.
Khalil Gibran in O Louco