O senhor Valéry percorria sempre as mesmas ruas da cidade com os mesmos sapatos, um par de sapatos para cada rua.
Desde que nascera que vivia por ali, mas só conhecia 5 ruas que percorria com os seus 5 pares de sapatos diferentes.
O senhor Valéry explicava:
- É que absorvo demasiado as coisas. É como se ao atravessar uma rua nova o chão ficasse colado aos meus sapatos e mais ninguém tivesse espaço para pousar os pés. É como se a partir daí só os pássaros pudessem percorrer a rua - finalizava, num tom poético, muito raro em si, pois era um homem que se orgulhava da sua lógica.
- O problema - explicava o senhor Valéry - não é dos sapatos, é da minha
vontade de levar para casa tudo aquilo em que toco.
E o senhor Valéry clarificava:
-
Como não me sinto completo comigo apenas, penso que tudo o que não sou eu me poderá completar, e portanto quero-o para mim, e roubo-o ao mundo.
- Na verdade, as ruas agarram-se aos meus sapatos porque eu não sou feliz - disse o senhor Valéry, melancólico.
E depois disse ainda, recuperando os seus raciocínios habituais:
- Se um triângulo rectângulo tiver saudades do tempo em que era um quadrado e se quiser voltar a ser de novo um quadrado, não deverá juntar-se ao que deseja ser (o quadrado), pois assim nunca ficará como deseja.
E o senhor Valéry, depois deste raciocínio algo confuso, viu-se obrigado a desenhar para clarificar a ideia.
- Vejam, então, o que sucede se o triângulo rectângulo se juntar à forma em que deseja transformar-se, o quadrado. E o senhor Valéry desenhou
No fundo - disse o senhor Valéry, enquanto fazia outro desenho -
devemos juntar-nos, sim, àquilo precisamente que não gostamos de ser, para assim nos conseguirmos transformar no que pretendemos.E o senhor Valéry desenhou
- E isto é confuso de mais, e é também um pouco triste - disse, a concluir.
O senhor Valéry depois não disse mais nada - já estava cansado e era tarde - porém o último desenho que fez foi o de um quadrado dividido em muitos bocadinhos.
Gonçalo M. Tavares in O Senhor Valéry