26.4.06

O essencial

Depois de um prolongado silêncio, o senhor Henri disse: hoje vou entrar e sair sem proferir uma única palavra.
... a partir de hoje vou reduzir o meu discurso ao essencial, visto notar que neste estabelecimento não dão o devido valor às minhas dissertações enciclopédicas.
... a partir de hoje só abrirei a boca para pedir mais absinto, e sobre o resto ninguém me ouvirá mais nada, porque, no fundo, vossas excelências são um conjunto de bêbados.
... a partir de hoje só mesmo o essencial.
... e de informações fico-me por esta.
... mais um copo de absinto, excelência - disse o senhor Henri.
Gonçalo M. Tavares in o Senhor Henri

25.4.06

A memória

O senhor Henri estava sentado no banco de jardim a pensar se o seu corpo se levantaria para ir beber um copo de absinto.
O senhor Henri disse: a minha alma já se levantou.
O senhor Henri olhou depois para o corpo, tentando localizar o próprio rosto, mas não conseguiu.
... há partes do meu corpo que só posso ver com os meus olhos, e há outras que só posso ver com a memória.
... é como se a memória tivesse olhos, e mais antigos que os outros dois.
O senhor Henri depois calou-se.
E o senhor Henri, depois de um breve silêncio, disse: o certo é que a minha vontade já bebeu um copo de absinto, e eu não.
... a minha vontade já se encontra, neste momento, mais bêbada que eu.
... vou, pois, apanhá-la - disse o senhor Henri.
O senhor Henri levantou-se, então, do banco do jardim com um súbito movimento.
Eis finalmente uma decisão. Ao absinto - gritou!
E começou a andar rapidamente.
Gonçalo M. Tavares in O Senhor Henri

16.4.06

Sorrir


Porque perdi o sorriso
que antes cobria meus lábios?
Porque sou o que não era
porque deixei de ser eu?
Mas, eu não perdi o siso,
dentro de mim tudo é meu!

Foram ventos que passaram,
águas negras que caíram,
véus espessos que toldaram
o meu olhar que turvou.
Porque perdi o sorriso?
Foi o tempo que o levou...
Isabel Aresta in De Mãos Abertas...

10.4.06

Saulo

Esta hitória tem início na cumplicidade de um crime, um linchamento, como tantos outros que aconteceram ao longo dos séculos. Este tem um nome: lapidação.
Decorrente de uma determinação a um tempo legal e religiosa, a execução não requer a presença de nenhum carrasco, apenas alguns homens vulgares que se esforçam por se impregnar de ódio para darem livre curso aos seus instintos. Cada um dos actores mune-se de pedras para as lançar sobre o alvo vivo. Cada vez mais depressa, cada vez com mais força: uma execução que é também um concurso de pontaria.
No ano 34 da nossa era, nos arrabaldes da cidade de Jerusalém, o homem atingido por essas pedras não procura esquivar-se. De joelhos, imóvel, reza. Ouvem-se estas palavras:
- Senhor Jesus, recebei o meu espírito!
Intensificam-se as pedradas contra o alvo. Começam a espalhar-se pelo corpo manchas escuras e sanguinolentas. Quebram-se os ossos. Por causa da transpiração, os executores depositaram os seus mantos aos pés de um jovem que indubitavelmente «aprova». Pelo gesto ou pela palavra?
Uma pedra atinge o lapidado em cheio na cabeça. Tem ainda força para murmurar:
- Senhor, não lhes leves em conta este pecado...
Cai. Morre. O seu nome é Estêvão. Pouco antes, a pequena comunidade cristã de Jerusalém tinha-o escolhido como um dos Sete encarregados de a administrar. Acusado de pronunciar «palavras blasfemas contra Moisés e contra Deus», foi arrastado diante do Sinédrio. Não satisfeito com a afirmação da sua fé, chegou mesmo a proclamá-la.
De toda a assembleia brotou um grito:
- Lapidai-o!
O jovem que guardou os mantos chama-se Saulo. É natural de Tarso, na Cilícia.
Alain Decaux in O Aborto de Deus (cap.I)

6.4.06

Esperança

Há esperanças perdidas
que mesmo assim esperamos.
Não nos importa que a vida
negue aquilo que sonhamos.
Esperança é quase ilusão.
Esperança ajuda a viver
Esperança é mais que alimento.
Como alguém que dá a mão
faz parte do nosso ser
e é nossa em cada momento.

A esperar continuamos...
Com esperança caminhamos!...
Isabel Aresta in De Mãos Abertas...

5.4.06

...home


The weary Mole also was glad to turn in without delay, and soon had his head on his pillow, in great joy and contentment. But ere he closed his eyes he let them wander round his old room, mellow in the glow of the firelight that played or rested on familiar and friendly things which had long been unconsciously a part of him, and now smilingly received him back, without rancour. He was now in just the frame of mind that the tactful Rat had quietly worked to bring about in him. He saw clearly how plain and simple - how narrow, even - it all was; but clearly, too, how much it all meant to him, and the special value of some such anchorage in one's existence. He did not at all want to abandon the new life and its splendid spaces, to turn his back on sun and air and all they offered him and creep home and stay there; the upper world was all too strong, it called to him still, even down there, and he knew he must return to the larger stage. But it was good to think he had this to come back to; this place which was all his own, these things which were so glad to see him again and could always be counted upon for the same simple welcome.
Kenneth Grahame in The Wind in the Willows (final do capítulo Dolce Domum)

3.4.06

Ronda dos Braços Quebrados

I
Minh'alma vai à frente, eu rojo atrás dela:
Porque eu sou feio e triste,
Mas a minh'alma é bela...


Sim, a minh'alma sabe essas palavras ébrias
Que nos atiram para o Infinito.
Quando a minh'alma fala, a sua voz é um grito,
Grito de oiro que vara a solidão do espaço,
E Deus acolhe no seu regaço.
Que pena que a minh'alma
Só pela fala do meu corpo fale!
Que a fala do meu corpo é intolerável,
Mas a minh'alma é bela,
E eu ou hei-de pedir-lhe que se cale,
Ou hei-de dar-lhe a voz da minha língua miserável!

II
- «Onde há uma doutrina
«Que posso pôr de acordo
«Toda a minha grandeza
«Com a minha desgraça?

«Que Deus humano me dirá essa parábola divina?

«Quem me fará esse milagre?

«Quem me abrirá essa porta?

«Seja quem for,
«(Deus ou Satá, pouco importa)
«Quero chamar-lhe meu senhor,
«Acolher-me a seus pés como um escravo!»

Mas em vão
Eu atiro ao silêncio o meu pregão,
Eu o atiro à multidão que passa:

- «Onde há uma doutrina
«Que possa pôr de acordo
«Toda a minha grandeza
«Com a minha desgraça?»

III
Terra do chão, tapa-me a boca!
- Terra do chão que piso aos pés...
Areias do deserto,
Areias que subis no ar, turbilhonando,
Cegai-me!

Prostrai-me,
Ventos que ides passando assobiando...

Ondas do mar que desabais,
(Ah, o mar...!)
Levai-me!

Estou fartinho de lutar,
Não posso mais.


(Mas não queria enlanguescer na minha enxerga...)
José Régio in Poemas de Deus e do Diabo