23.1.08

... em água a ferver.

- Sim, mas... Pensei que aqui se sentisse como peixe na água.
- Talvez. Como acha que se sente um peixe na água?
- Bem... Suponho que bem.
- E se for água a ferver?
- Ah. Compreendo o que quer dizer.
- Pois. Era assim que eu me sentia no Japão.
- Como peixe em água a ferver. Hmm. É irónico.
- Irónico?
- Algo me faz pensar que era assim que o meu filho se sentia em Portugal.

(http://www.photosharingforum.com/data/562/medium/Boiling_Water_03.jpg)

[...]
- Portanto, como vê, sou uma fraude...
- Você não é uma fraude, Tano. Não foi uma fraude para o Nuno. Passou-lhe uma mensagem importante. Na minha profissão acontece muito: dizermos coisas nas quais não acreditamos muito, mas que se revelam importantes para os outros. E será isso assim tão mau? Inspirar fé mesmo quando se tem muito pouca?

António Jorge Gonçaves & Rui Zink in Rei

6.1.08

Quero ser engolida por um buraco negro


Eu quero voar. Quero fechar os olhos, abrir os braços e voar, subir e subir e subir, atravessar nuvens e sentir a sua humidade na ponta da língua, trespassar o azul do céu com o azul dos meus olhos, e continuar, sempre, por aí acima. Quero sentar-me na lua e sentir o cheiro das estrelas. Quero ser engolida por um buraco negro, ser perseguida por uma estrela cadente. Quero espreitar o interior dos satélites, dançar nas suas asas.
E depois, regressar. Conhecer os mares, nadá-los, aprender os seus fundos. Perseguir peixes, ser engolida por uam baleia e adormecer no seu estômago. Descobrir grutas subterrâneas, desenterrar tesouros fabulosos. Ou simplesmente: respirar dentro de água.
Quero deitar-me na erva fofa de um campo verde e fechar os olhos, ouvir o sopro do vento acariciar as árvores: ser engolida pela escuridão, respirar devagarinho, saborear a paz; e sentir que o tempo vai parando: como se o mundo esperasse por mim. Percebes isto? Sentir que o mundo espera por mim. Sentir que sou tão importante para o mundo que ele espera por mim.
E depois, agradecer-lhe: devorando-o. Sei lá: subir árvores, andar de bicicleta, roubar nêsperas e atirar os caroços a quem calhar, colher flores, aprender a linguagem secreta dos gatos, fazer pão e comê-lo com manteiga, rasgar os livros de que não gosto, tocar violino no cimo de uma montanha, fazer aviões de papel e atirá-los do alto de um farol, colher caracóis nas bermas das estradas e depois libertá-los nos pomares, brincar com bonecas, abordar pessoas desconhecidas e adivinhar-lhes os nomes, caminhar pelos passeios e sorrir a quem passa.
Quero percorrer o mundo, cada centímetro do mundo, e apropriar-me dele, fazê-lo meu. Quero devorar vida, engolir felicidade; e depois, devolvê-la, através dos olhos, a quem amo, a quem um dia odiei. Quero beber a beleza do mundo e dos homens, embriagar-me de beleza. Destilar beleza. E depois, morrer: saciada. Deitar-me novamente na erva fofa do mesmo campo verde e fechar os olhos, ouvir o sopro do vento e acariciar as árvores; ser engolida pela escuridão, respirar devagarinho, saborear a paz; e sentir que o tempo vai parando, parou: para sempre.
Quero tão pouco, afinal. Não achas?

Paulo Kellerman in Os Mundos Separados que Partilhamos