11.5.07

A ideia

[...]
Estava um calor desagradável.
Sentavam-se à sombra da cafetaria, enquanto assistiam de longe a uma partida de críquete. Mais perto deles, duas raparigas e um rapaz sentavam-se na relva, a beber sumo de laranja em copos de plástico. Uma das raparigas, que tinha uma guitarra ao colo, pousou o copo e começou a tocar uma canção popular, cantando numa voz aguda e sauve. Glogauer tentou escutar a letra. Enquanto estudante, sempre apreciara canções populares tradicionais.
- O Cristianismo morreu - Monica bebericou o chá - A religião está a morrer. Deus foi morto em 1945.
- Pode ser que ainda se dê a ressurreição - disse ele.
- Espero bem que não. A religião é a criação do medo. O conhecimento destrói o medo. Sem medo, a religião não pode sobreviver.
- E achas que não há medo hoje em dia?
- Não do mesmo género, Karl.
- Nunca pensastes na ideia de Cristo? - perguntou-lhe ele, dando novo rumo à conversa. - O que isso significa para os cristãos?
- O mesmo que a ideia do tractor significa para um marxista - respondeu ela.
- Mas o que surgiu primeiro? A ideia ou a realidade de Cristo?
Ela encolheu os ombros.
- A realidade, se é que importa. Jesus foi um desordeiro judeu que organizou uma revolta contra os romanos. Acabou crucificado em vão. É tudo o que sabemos e tudo o que precisamos saber.
- Precisamente o que quero dizer, Mónica. - Gesticulou e ela afastou ligeiramente. - A ideia precedeu a realidade de Cristo.
- Oh, Karl, não insistas. A realidade de Jesus precedeu a ideia de Cristo.
Um casal passou por eles, e olhou-os de relance para os ver discutir.
Monica reparou e calou-se. Levantou-se e ele também, mas ela abanou a cabeça negativamente.
- Vou pra casa, Karl. Tu, fica. A gente vê-se daqui a uns dias.
Ficou a vê-la descer o caminho largo em direcção aos portões do parque.
No dia seguinte, quando chegou a casa do trabalho, deu com uma carta dela. Devia tê-la escrito assim que o deixou e enviado no próprio dia.
[...]
Michael Moorcock in Eis o Homem

7.5.07

Dar-se

Há quem dê coisas, há até quem dê coisas muito boas, há quem dê o seu tempo e o seu saber, e isto já é mais importante porque é dar-se. Mas dar a vida até ao fim, gastar-se por uma causa nobre, como uma vela que arde e dá luz a outros, isso é divino! Quem o sabe fazer entende a morte de Cristo e a cruz.

Vasco Pinto de Magalhães, s.j. in Não Há Soluções, Há Caminhos (10 de Abril)

4.5.07

Crucificado

Gritei aos homens: Quero ser crucificado!
E os homens responderam-me: Porque havia de cair o teu sangue sobre as nossas cabeças.
Respondi: De que outro modo dereis ser exaltados senão crucificando loucos?
Convenci-os e fui crucificado.
Isso acalmou-me. Quando eu estava suspenso entre o céu e a terra levantaram a cabeça para me ver e sentiram-se grandes.
Era a primeira vez que levantavam a cabeça.
Enquanto me olhavam, um deles perguntou: O que é que estás a expiar? Outro gritou: Porque é que te sacrificas? O terceiro disse: Acreditas que por esse preço comprarás a glória do mundo? Um quarto exclamou: Vejam como ele sorri! Pode perdoar-se uma dor assim?
Respondi a todos: Recordem apenas que sorrio. Não estou a expiar nada, nem aspiro à glória; nada tenho a perdoar.
Tive sede e pedi que me dessem a beber o meu próprio sangue. Que pode saciar a sede de um louco, senão o seu próprio sangue?
Estava mudo, e pedi que me abrissem feridas para ter boca. Estava prisioneiro dos vossos dias e das vossas noites e busquei uma porta para dias mais vastos e noites maiores.
Agora vou partir como partiram todos os outros a quem mataram na cruz.
Só assim podemos aspirar a terras mais vastas e a céus mais amplos.

Khalil Gibran in O Louco