20.2.06

Ser ou não ser

Os conselhos são parecidos com a máquina de ski aeróbica de baixo impacto que comprou através de um anúncio das telenovelas - fica com ela durante algum tempo, sem lhe dar muita atenção, e depois oferece-a a outra pessoa. É a única coisa que se pode fazer com os conselhos e com as máquinas de ski aeróbica já que, na verdade, nunca se serve deles.
Há por aí uma série de maus conselhos. Há, por exemplo, toda aquela herança cultural, bastante complicada, de sabedoria popular que tem sobrevivido durante séculos, sendo ignorada e depois empurrada, como uma lata de sopa cheia de ferrugem, para a nova geração que a agarra, ignora e passa à geração seguinte. [...]
Quantas vezes alguém lhe disse:«Anima-te. Pior do que estão não podem ficar!» Este tipo de desonestidade barata é mais do que insultante. Se as coisas têm uma característica comum, com a qual todos concordamos, é a de poderem tornar-se sempre piores. Se deixarmos, as coisas ficam ainda piores do que a segunda parte de um filme de Jim Carrey.
Outro conselho que me chateia e enerva, por ser confuso e completamente falso, é o seguinte: «Seja você mesmo». Já alguma vez ouviu algo tão aterrador? A civilização e todos os padrões de decência humana têm precisamente como base o facto de não sermos nós próprios. Nunca leu O Senhor das Moscas? Ou disputou com outra pessoa o último lugar do parque de estacionamento de um centro comercial? Por detrás dos fantásticos cortes de cabelo somos animais.
Mesmo pondo de parte o debate natureza-educação, ser você mesmo envolve muitos perigos. A maior parte de nós, bem lá no fundo, é um gato cobarde, fugidio, hipócrita e, por vezes, assustado, ambivalente em termos emocionais, moralmente frágil e com um gosto secreto por certo tipo de música ligeira que, em circunstância alguma, tornaria público. Porque haveríamos de ser essa pessoa? Num mundo de indivíduos que parecem ser mais interessantes do que nós, porque haveríamos de ficar presos a nós próprios? Se sermos nós mesmos fosse assim tão bom, haveria muitas pessoas à espera de serem como nós.[...]
O mais importante, de tudo o que disse, é isto: não pense que tem de ser sempre você mesmo. [...]
Veja bem. Não estou a sugerir-lhe que tente melhorar. Não. Isso requer tempo e esforço, quase nunca dá resultado e ainda o deixa preso a si. Seja apenas outra pessoa durante algum tempo. Este mundo é demasiado diversificado para sermos sempre a mesma pessoa. [...]
Se conseguiu aprender a dominar o seu ovo de avestruz, já deve ter percebido que tudo é possível. É o mesmo que dizer: tudo se pode fingir. Pode ser a pessoa que quiser.

Darrel Bristow-Bovey in Fui eu que mexi no teu queijo

10.2.06

Momento

Eu já não sei o que digo
e, até, nem sei quem sou,
ando errante pela rua
e, atrás dos outros, vou.

Onde é que eles me levam?
Não sei e pouco me importa,
eu caminho, caminhando...
Serei viva ou serei morta?

Sopra uma brisa leve
que me ajuda a caminhar
e eu, embalada vou,
como a nuvem vai no ar.

O sol, então, aparece
e assim desperta a mente
eu, sou aquilo que sou,
eu, já voltei a ser gente!
Isabel Aresta in De Mãos Abertas...

8.2.06

A Noite e o Louco

- Sou como tu, ó noite; escuro e despido, ando por atalhos em chamas, situados acima dos meus sonhos e ao contacto com os meus pés da terra brotam azinheiras.
- Não, não és como eu, ó Louco, porque ainda olhas para trás a medir na areia o rasto dos teus passos.
- Sou como tu, ó noite, silencioso e profundo, e no coração da minha aldeia há uma deusa que vai dando à luz um filho com que o céu há-de tocar o inferno.
- Não, não és como eu, ó louco, porque estremeces diante da dor e te causam temor as canções do abismo.
- Sou como tu, ó noite, terrível e selvagem; porque os meus ouvidos percebem clamores de nações conquistadas e suspiros de reinos esquecidos.
- Não, não és como eu, ó louco, porque continuas amigo do teu pequeno Ego e não podes ser amigo do teu Ego monstruoso.
- Sou como tu, ó noite, cruel e terrível; porque meu peito está iluminado por navios que ardem no mar e os meus lábios estão húmidos do sangue de guerreiros degolados.
- Não és como eu, ó louco, porque ainda suspiras por encontrar a tua alma gémea e não foste capaz de converter-te na tua própria Lei.
- Sou como tu, ó noite, feliz e alegre; porque aquele que habita na minha sombra está ébrio de vinho virgem e quem me segue está a pecar com alegria.
- Não, não és como eu, ó Louco, porque a tua alma está envolta num véu de sete horas e não levas o coração na mão.
- Sou como tu, ó noite, paciente e apaixonado; porque no meu peito estão enterrados mil amantes em mortalhas de beijos murchos.
- É verdade, ó louco, que és como eu? Pareceste-te comigo? Podes cavalgar numa tempestade como um cavalo selvagem e agarrar o relâmpago como se fosse uma espada?
- Sim, sou como tu, ó noite, como tu sou poderoso e alto e o meu trono assenta sobre montanhas de deuses caídos; diante de mim desfilam os dias para beijar a orla do meu vestido, sem se atreverem a fitar-me o rosto.
- És como eu, filho do meu mais obscuro coração? É certo que nas tuas têmporas vibram os mais indómitos pensamentos e que podes usar a minha vasta linguagem?
- Sim, somos irmãos gémeos, ó noite, porque tu revelas o espaço e eu a minha alma.
Khalil Gibran in O Louco

2.2.06

A redoma da existência


Vivo numa redoma.
Numa redoma de vidro.
Numa bolha de vidro,
na profundeza do oceano.
Posso ver o mundo de água.
Posso deixar que me vejam.
Estou protegida da água do oceano,
que me pode afogar.
Essa água Salgada e Escura.
... Como estou enganada!
A minha redoma está cheia de água.
Já estou afogada!
Numa água igualmente salgada.
Mas de onde veio essa água que me afoga?
Veio de mim. Das lágrimas que chorei.
O sal vem de mim, o escuro vem de mim...
sou eu que me afogo...
Porque existo dentro de uma redoma!
autor desconhecido in Pensamentos
(...afinal... nem tudo está escrito...)